quarta-feira, 3 de março de 2010

Dizem que o povo gosta

Texto tirado do livro "O teatro como arte marcial", de Augusto Boal.

"É disso que o povo gosta!" - assim justificam os canais de televisão a qualidade execrável de muitos dos seus piores programas.
Fosse válido este argumento, estariam nossas escolas autorizadas a substituir as difíceis matemáticas, a última flor do Lácio e a filosofia kantiana por fáceis aulas práticas do sensual Kama Sutra, porque é disto que o povo gosta...
Nossos museus exibiriam, em lugar de obras-primas da pintura renascentista, as esculturais coelhinhas da Playboy, ao vivo, porque disto a máscula metade brasileira sempre foi ávida - disto o povo gosta, e com apetite!
Nossos hospitais, em vez de médicos e medicamentos, empregariam homens de terno e gravata operando histéricos descarregos, sacerdotes de variadas religiões eletrônicas, porque, infelizmente, as curas milagrosas são o refúgio de boa parte da nossa igênua população, que disto gosta ou isto teme: das televisivas bocas pastorais jorram labaredas do ameaçador diabo tridentino, rouco e fanho, exigindo o dízimo, em horário nobre!
Outro argumento, falaz como o primeiro, diz que a TV deve mostrar a crua realidade tal como é, sem grinaldas nem guirlandas. Para este efeito, proliferam policiais perseguindo bandidos em alta velocidade; casais acusando-se de caleidoscópicas infidelidades e promovendo físicas violências diante das ávidas câmeras; portadores de exóticas deformidades lamentando a sorte ingrata e o cruel destino. Realidades são: existem! Quem duvida? Realidades banais, vidas vazias, sem rumo, sem sal. É assim mesmo, dizem, é a vida como ela é...
Mas - cabe a pergunta - a vida de quem? Não existem outras vidas neste Brasil imenso? Seremos todos reles idiotas?
Neste últimos anos, no Brasil, seguindo a trilha de vários outros países do mundo, assistimos à proliferação do pior e mais nefasto dos programas que já surgiram nessa fábrica de vacuidades que é a TV: os reality-shows.
Neles, pessoas insossas - sem o menor interesse intelectual, sem que se destaquem artística, política ou socialmente, nem sequer pelas tatuagens impregnadas em seus ombros, costas, nádegas e cóccix - ficam encerradas em uma casa sem nada dizer ou fazer, nenhum objetivo a perseguir a não ser o de permanecer em cena o maior tempo possível atraindo a atenção dos camera-men, esperançosos de um close-up.
As telenovelas - mesmo de trama inverossímil e flácida, mesmo superficial e anódina - mostram relações humanas estruturadas segundo certos valores morais e políticos... mesmo discutíveis. Já os reality-shows, ao optarem pela ausência (aparente) de qualquer trama preconcebida, ao deixarem que tudo aconteça ao sabor do acaso, e pela total falta de lucidez de pensamento, nada oferecem a não ser o despropósito daquelas vidas psiquicamente vegetativas.
Vidas fragmentadas e míopes, sem metas em longo prazo, nas quais a maior preocupação ontológica dos personagens é abrir a geladeira e reclamar da falta de uma boa pizza; sua maior angústia, o telefone que não toca.
Essa fragmentação se assemelha ao cotidiano igualmente fragmentado da maioria dos telespectadores que são, assim, confortados em suas vidas despropositadas.
Qual o universo vocabular desses reality-shows? Talvez não alcance as básicas duzentas ou trezentas palavras usadas comumente na TV, mesmo se incluirmos artigos e pronomes, interjeições e nomes próprios, e as frequentes onomatopéias.
Que idéias inteligentes poderá gerar esse esquálido repertório léxico? Talvez somente uma: desliguem suas TVs.

Um comentário:

  1. Ha Tv sera sempre uma grande mentora da maioria do lixo que as pessoas dizem que gostam.Ai me pergunto:Gostam mesmo ou o senso comum que fala mais alto?!

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