terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Ferramentas de trabalho (palhaços de corpo e alma)


O corpo e a alma são para um palhaço (assim como para um ator) as principais ferramentas de trabalho.
Cuidar do corpo significa manter-se em forma para ter a agilidade e a resistência que a profissão exige. Para isso é preciso seguir uma rotina de exercícios.
No circo, essa rotina é natural, pois diversas técnicas aprendidas pelo palhaço só são bem executadas se ele treina como um verdadeiro atleta.
Nos outros caminhos, o palhaço geralmente tem que estabelecer a sua própria rotina de exercícios. Existe um milhão de métodos à sua escolha - natação, ioga, aulas de dança, etc. Pode ser qualquer um, contanto que ele faça alguma coisa.
A outra ferramenta de trabalho do palhaço é a sua alma. Em qualquer coisa que ele faça, precisa cuidar para que a sua alma esteja junto do corpo. Pode parecer absurdo falar que essa é uma exigência da profissão de palhaço - afinal, a gente imagina que a alma de todo mundo está sempre junto do corpo, a menos que a pessoa esteja morta. Mas não é bem assim... Quer um exemplo? Lição de casa. A alma adora sair do corpo nessa hora e ficar ali do lado, esperando a gente acabar. O corpo pode até estar inteirinho lá, sentadão na escrivaninha, enquanto o cérebro se contorce para resolver aquele maldito problema de matemática. Mas a alma, enquanto isso, às vezes vai para a janela ouvir o pessoal jogando bola lá embaixo, ou vai para perto do telefone, louca para ligar para a Aninha e saber por que ela brigou com a Tatiana, que, aliás, é uma chata mesmo, vive falando mal dos outros, como naquele dia (que dia foi mesmo?), etc.
Resultado desta viagem da alma: você erra um exercício super-fácil e leva a maior bronca porque não prestou atenção. Com o palhaço acontece a mesma coisa: o número dele fica sem graça e ele corre o risco de ser ignorado pela platéia - o que é tão ruim ou até pior do que uma bronca...
Quando o palhaço coloca a alma em cada gesto, em cada passo, em cada olhar, tudo fica parecendo verdade, e é a verdade que faz o público realmente se emocionar e rir.

Este é o maior desafio de todo o palhaço: fazer sempre pela primeira vez a mesma cena todo dia.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Sobre o Clown e o teatro físico

por Gardi Hutter (numa "conversa de café" com Cristina Elias)

A linguagem física é uma forma de comunicação emocional. Quando se fala com o corpo, a mentira se torna quase impossível. O impacto do silêncio no público é profundo e imediato. A palavra, por sua vez, justamente por ser tão rápida e precisa, torna-se excludente. O movimento é uma linguagem universal. Não importa se uma pessoa é brasileira ou suiça. E é por isso que a minha personagem clown provoca reações tão semelhantes nas plateias mais diversas, em todo o mundo.

O "Clown" está enraizado num solo mais arcaico do que o do teatro clássico, circo ou cabaré. É uma figura trans-cultural e universal. Todas as civilizações acabaram por encontrar uma figura cômica responsável por segurar o "espelho" à frente delas: Arlequim, buffone, coringa, trickster...

O "cômico" traz em si o lado obscuro do ser-humano. Coloca em destaque a eterna busca da humanidade por sentir-se "civilizada". Mas a nossa natureza animal está sempre lá, escondida na camada mais superficial do fingimento.

Como Clown, eu sou ainda pior do que as pessoas... Todos nós temos defeitos e fraquezas, que passamos a vida a tentar esconder para não fazer "papel de palhaço". O "Clown" entrega-se completamente ao ridículo por livre e espontânea vontade. E, por isso, é LIVRE. Ele não tem medo de que os outros riam dele. Ele não tem medo de ser ridículo. Ele tem orgulho do seu próprio fracasso.

A linguagem física deve ser sempre "clara" e "simples". E isto é o mais difícil. Ser complicado é, em geral, fácil. A simplicidade exigeum processo lento e doloroso de fusão entre intuição e lógica analítica. O trágico deve atingir o seu nível mais extremo para que se transforme em cômico.

A risada é uma das formas mais ancestrais de "exorcismo". Trata-se de enfrentar medos e paixões - um mergulho na dor como forma de libertação. Não tem nada a ver com opressão ou ignorância. Rir sobre a morte é uma estratégia de sobrevivência. Todos sabemos que vamos morrer. Mas rir transforma este "monstro escondido embaixo da cama" num gatinho doméstico.

Às vezes, quando termino um show, escuto um coro de suspiros de alívio. Ao rir do palhaço, as pessoas estão na realidade a rir de si mesmas. E isto é libertador.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Os curso e oficinas de Clown

Nos cursos e oficinas de clown, o aprendiz é levado a se expor de diversas maneiras, enfrentando constantemente o medo do ridículo. Ele tem, por exemplo, que cantar, dançar ou dublar uma música na frente de todo mundo, e sem fazer gracinhas! Ou seja, tem que fazer tudo pra valer. O que o mestre deseja é que o futuro palhaço descubra o que nele mesmo é ridículo, espontâneo e verdadeiro. E - puxa - a gente nem imagina quanta coisa faz sem perceber: pequenos gestos, olhares, jeitos de andar, de falar... Isso sem contar as coisas que fingimos não fazer e não sentir. Coisas que guardamos lá no fundo e não mostramos para ninguém.
Durante os exercícios, o mestre observa o aprendiz e vai dando toques preciosos: "Aquele gesto que você fez com a mão é ótimo, pode repetir sempre", "não faça mais aqueal gracinha porque ficou falso e sem graça".
No circo, o aluno segue um modelo, um número que já existe, e o faz muitas vezes, até descobrir o seu próprio jeito de fazer.
Nas oficinas de clown, ao contrário, o aprendiz não segue um modelo. Antes de fazer um número, ele trabalha até descobrir coisas suas, reais, que exponham o seu ridículo. O seu número vai ser criado com essas descobertas.
O circo e as oficinas são, portanto, caminhos diferentes, mas que levam para o mesmo endereço. Trilhando qualquer um dos dois, com trabalho e dedicação, o aprendiz pode virar palhaço. Palhaço, clown, tudo tonto igual.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A geometria a serviço da emoção

Jacques Lecoq
Tradução feita por Tiche Vianna, com finalidade didática para utilização durante o estudo de Commedia Dell’Arte.


O meu encontro com Amleto Sartori:

Cheguei em Padova em 1948 para ensinar movimento e improvisação aos atores de teatro Universitário daquela região. Este grupo de jovens profissionais foi uma das companhias piloto da Itália do após guerra, trazendo à luz, obras de Brecht e de Ruzante representando “A exceção é a Regra” e “La Moscheta”. Com esta troupe, pude elaborar um mimo aberto ao teatro, diverso daquele formal e estético que na França, estava fechado em um verdadeiro gueto e desenvolver o uso da máscara silenciosa e falante. Minha experiência com a máscara teve início em 1945 com a Companhia dos Comédiens de Grenoble, dirigida por Jean Dasté, primeira experiência de descentralização dramática na França. Tínhamos preparado uma figuração mímica intitulada “L’Esodo” que reevocava o drama dos camponeses obrigados a abandonarem suas aldeias e escapar pela estrada, na tentativa de fugir do invasor. A guerra havia terminado há pouco e todos sentíamos ainda fortemente estes problemas. Este espetáculo foi representado também nas aldeias das montanhas onde o público nunca tinha visto uma representação teatral, mas aceitou sem problemas a convenção da máscara, a representação silenciosa e as várias metamorfoses às quais nos submetíamos, transformando-nos, de quando em quando, em camponeses, animais, multidão. Naquele período utilizávamos uma máscara que até então chamávamos “máscara nobre”, mas em seguida preferi defini-la como “máscara neutra”. Esta máscara era derivada das experiências feitas na escola de Vieux-Colombier de Jacques Copeau, de quem Jean Dasté foi aluno e continuador. Esta máscara privada de expressões particulares, de aspecto vagamente orientalizado (Copeau era fascinado pelo teatro Nô), representava tudo o que homens e mulheres têm em comum, mesmo se a máscara utilizada pelos homens era diversa daquela destinada às mulheres. Chegando em Padova, quis naturalmente continuar aquela experiência com a máscara que tinha me influenciado profundamente, fazendo com que cada ator construísse sua própria máscara neutra. Precisei encontrar alguém que pudesse nos ajudar neste campo. Gianfranco De Bosio, diretor da companhia, conhecia um escultor que tinha trabalhado para um espetáculo sobre a poesia negra e que tinha realizado algumas máscaras para aquela ocasião, em madeira esculpida, simbolizando grandes rostos negros. Estas máscaras não tinham sido feitas para serem usadas, mas como elementos decorativos dos atores que, colocando-as ao lado, plantadas sobre um bastão, criavam um espetáculo significativo e apropriado à leitura poética. Acontece desta maneira meu encontro com Amleto Sartori. Nos encontramos sobre um tablado de 5 metros de altura, ao longo do muro lateral do célebre Caffé Pedrocchi, onde Amleto estava terminando um novo afresco que substituía um antigo, completamente destruído. Usava um chapéu de jornal na forma de barquinho e uma blusa manchada de gesso. Artista e artesão no espaço aberto de sua cidade. Expliquei-lhe o projeto e ele nos levou, com entusiasmo, ao seu laboratório na escola Selvatico. Toda a companhia se pôs a trabalhar: cada um procurava a máscara neutra sob o olhar curioso de Amleto. Preparamos a terra, depois o gesso e enfim, a cola e o papel, seguindo a técnica que Jean Dasté tinha me ensinado. (...) Eu respeitava escrupulosamente este rito. A coisa mais difícil era, de qualquer maneira, a modelação da terra para a máscara neutra. O resultado não foi muito satisfatório. As máscaras neutras, de neutro, tinham somente o nome (...) colocadas sobre os nossos rostos, impediam as emoções. Sartori observava nossos esforços com muito respeito e um pouco de compaixão. E então, quando chegou o dia de ir para a cena representar minha primeira pantomima mascarada, “Porto di Mare”, inspirada no porto de Chioggia, Amleto decidiu com autoridade e competência que as máscaras seriam feitas por ele, as nossas eram feias demais. Ninguém permitiu se opor à sua decisão, eu não esperava outra coisa, tínhamos tirado de nós mesmos um grande peso. Assim, com as máscaras neutras em papel machê, teve início, para Sartori, a sua aventura com as máscaras e para mim, a história de uma longa colaboração e de uma grande amizade. Em 1951 saí de Padova e fui para Milão a pedido de Giorgio Strehler e Paolo Grassi, para fundar a Escola do Piccolo Teatro e dirigir o coro de “Electra” de Sófocles no Teatro Olímpico de Vicenza. Foi em um café, ao lado do teatro desta cidade, em um dia de sol e sob a sombra das pedras, que apresentei Sartori à Strehler, a propósito das máscaras que, até então, Amleto tinha realizado. O Piccolo Teatro já tinha apresentado “Arlecchino Servitore di due Padroni”, de Goldoni com sucesso que todos conhecemos. Marcello Moretti, Arlecchino genial, que marcou este papel com sua personalidade inventiva, ainda não usava a máscara, preferia utilizar uma maquiagem preta que desse a ilusão da máscara, sem incomodar suas evoluções. Os outros personagens tipificados, Pantalone, Brighella e o Dottore, usavam máscaras de papelão de pouca qualidade. Sartori, sempre arrojado, propôs à Strehler experimentar a confecção das máscaras em couro para este espetáculo, remetendo-se á tradição das máscaras da Commedia Dell’Arte. As promessas foram mantidas. Amleto nunca tinha trabalhado com couro até aquele momento. Lembro-me de tê-lo acompanhado ao Museu da Ópera, em Paris, para que visse as antigas máscaras dos Zanni (antepassado de Arlecchino). Ele as observou bem de perto para ver como eram construídas. Pouco tempo depois, a primeira máscara em couro de Arlecchino tomava forma. Tentei experimentá-la e torná-la viva mas, em vão. Não funcionava. A vitrine de exposição não servia para mantê-la viva. Ainda conservo esta máscara em minha casa, pendurada na parede de meu estúdio, o que é um destino muito triste para uma máscara. Uma máscara pode ser tecnicamente bem feita, bela de se ver, mas impossível de se utilizar. É preciso que sua forma encontre vida graças ao corpo e ao movimento do ator. Não pode exprimir tudo sozinha, precisa ser colocada em movimento. Sartori convidou Moretti a ir ao seu laboratório em Padova, várias vezes e, pouco a pouco, trabalhando juntos, a máscara de Arlecchino-Moretti tomou vida. Antes de iniciar a realização de uma máscara, Amleto estudava a obra teatral, procurava entender o papel, conhecia o ator que deveria vestir a máscara, procurava colher o "tipo" de representação e as capacidades da pessoa. Encontrou um couro macio e resistente. Tratou este material de modo que não se deformasse em contato com o suor do ator. Procurava continuamente melhorias. Um dia decidiu fazer-me uma máscara neutra em couro. Levou muito tempo, fez inúmeras provas, ele media meu rosto e eu ia experimentá-la em seu laboratório. Estava de tal forma grudada em minha pele, que eu não conseguia trabalhá-la. O couro era macio demais e foi preciso fazer uma outra com um tipo de couro mais sólido. Aprendi, desta maneira, que deve existir uma distância entre a máscara e o rosto, para poder utilizá-la. (...) Somente aqueles que vestem uma máscara podem conhecer a emoção que esta contém dentro de si e quão profundamente nos toca. É como possuir um segredo muito difícil de revelar. Amleto fez em seguida, várias máscaras expressivas inspirando-se particularmente nos velhos professores da Universidade de Padova e nos homens políticos daquela época. Encontrava naqueles rostos, em vários níveis, um amálgama de paixões que o colocavam em um estado de alegre provocação criativa. Retornei à Paris em 1956 para fundar a minha escola de teatro, trazendo comigo toda a série básica de máscaras de Commedia Dell’Arte, presente de Amleto, pela minha partida da Itália. Estas máscaras serviriam em seguida, de modelos a numerosos novos criadores de máscaras na França e no exterior, e teriam inspirado numerosos espetáculos aos meus alunos. Elas nos ajudavam a compreender uma Commedia Dell’Arte mais próxima a Ruzante, que a Goldoni, mais imediatamente inspirada à multidão que se amontoa nos mercados de Padova, do que à reconstrução pseudo-histórica de uma “italianidade” de museu. Commedia onde o homem que deve sobreviver, grita seus medos, sua miséria, sua fome, os seus amores e se “arranja” em uma hierarquia social onde não existe mais revolta, com um sentido trágico do irrisório que descobre as debilidades humanas. Commedia Dell’Arte, deixa aqui a Itália para tornar-se comédia humana e conquista, assim, seu verdadeiro significado. Depois do meu período italiano, prossegui as experiências com as máscaras, trabalhando paralelamente também com o espaço: era o próprio espaço o que seria diretamente colocado em jogo. Estas experiências me conduziram à utilizar as máscaras larvárias, rostos muito simples que apresentam um caráter preciso das formas cortantes, pungentes, comprimidas...que funcionam como instrumento e reinvocam as fisionomias animais. E então foram as “arquiteturas portáteis” (iniciadas com os arquitetos da Escola Nacional Superior de Belas Artes, em 1969), grandes estruturas em madeira, metal ou material plástico, conduzidas com os braços e manobradas pelo espaço como um veículo dinâmico provido a motor. Estes objetos se movem em uma representação abstrata sem que se refiram a qualquer figuração humana. Eles derivam das sensações físicas percebidas pelo corpo mímico no jogo das paixões (medo, ciúme, raiva...).

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

As escolas de circo

Antigamente só existiam dois jeitos de alguém fazer parte do circo: ou nascia em família de circense, ou fugia com um circo de passagem pela cidade. E por que será que as pessoas fugiam com o circo? Ora, por um motivo muito grande e muito simples: amor. Ou amor pela arte do circo, ou amor por algum artista do circo mesmo... Era um tal de moça se apaixonar pelo equilibrista, moço se apaixonar pela bailarina, que só vendo. Esses artistas são de fato encantadores. Não era para menos que exisita o bordão: "E o palhaço o que é? É ladrão de mulher!".
Desde que surgiram as escolas de circo (há bem pouco tempo), o número de fugitivos diminui bastante. Agora só foge com o circo quem se apaixona pelo trapézio, e não pelo trapezista.
O palhaço de circo tem que aprender a fazer muitas coisas: malabarismo, equilibrismo e principalmente acrobacias, para poder dar saltos, pulos, piruetas e cair sem se machucar.
Nas aulas específicas de palhaço, aprendem-se números antigos e tradicionais de circo. São gags cheias de diálogos engraçados, tropeções, tombos, enfim, todas essas coisas que fazem a gente morrer de rir. Quer dizer, a gente morre de rir quando elas são bem feitas, e para fazê-las direito o palhaço precisa repetir cada diálogo, cada tropeção, cada tombo pelo menos um milhão de vezes. Até descobrir o seu próprio jeito de falar, de tropeçar, de cair.
Este é o grande segredo: fazer um número antigo, que já foi feito por muita gente, mas de um jeito que só você sabr fazer.

Gags são pequenas cenas cômicas. Com uma sequência de gags é que o palhaço constrói seus números e espetáculos.