segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Minha cidadezinha se transforma num toldo

A chegada do circo durante a noite, na primeira vez que o vi, ainda criança, teve o cunho de uma aparição. Um mundo novo, não precedido por nada. Na noite anterior não existia e, na manhã seguinte, ali estava, diante da minha casa. De saída, pensei se tratar de um barco desproporcional. Logo a invasão, pois foi isso, uma invasão, estava ligada com algo de marinho, uma pequena tribo pirata. Então, além do medo, o fascínio pelo clown, surgido desse clima marinho, foi definitivo. Ao clown principal, Pierino, vi na pequena fonte, no dia seguinte à estréia. Poder tocá-lo, ser ele! Totó, seu irmão, era um clown branco pobre. Trabalhava com uma camisa, uma gravata e umas calças de fustão. Fazer rir me pareceu algo extraordinário, uma sorte, um privilégio. No espetáculo de domingo à tarde, sem o toldo, perto da cadeia, os presidiários gritavam atrás das grades. Totó se dirigiu duas vezes a eles. Como um clown branco, fazia outros augustos infelizes. Daquele momento em diante, minha cidade se transformou insensivelmente num grande toldo. Sob esse estavam os augustos, junto com o prefeito e o chefe fascista local vestidos de clowns brancos. A insatisfação que os clowns brancos traziam, também se podia achar em figuras dementes da cidade, sobretudo os augustos, mais que os clowns brancos. Essas figuras eram lembradas em casa como bichos-papões. "Se não comes o espinafre, vais ficar como o Giudizio" – dizia minha mãe. Giudizio era justamente um augusto de circo. Um capote militar cinco ou seis vezes maior que o corpo, sapatos de borracha branca até no inverno, uma manta de cavalo nos ombros. Mas possuía sua dignidade, como o mais esfarrapado dos palhaços. Fitava um Isotta Fraschini resplendente e, com uma bagana nos lábios presa por um alfinete, afirmava: "Nem de presente, ficaria com ele." Mas o clown branco, com seu encanto lunar, a elegância noturna, espectral, lembrava a fria autoridade de algumas monjas diretoras de asilos; ou a certos fascistas pretenciosos, com as brilhantes sedas negras, os alamares dourados, o rebenque (como a pazinha do clown), os capotões, o fez e os adornos militares, homens ainda jovens com os rostos pálidos dos capangas, dos notívagos. (...) "texto tirado do filme Clowns, de Fellini"

Nenhum comentário:

Postar um comentário